ILSI em Foco – setembro 2021 – artigo

Uma visita ao futuro: animais, plantas e microrganismos geneticamente modificados nos próximos 100 anos

Dr. Paulo Paes de Andrade: Professor de Genética da Universidade Federal de Pernambuco, membro do Comitê Científico Consultor do ILSI Brasil.

Os melhores escritores de ficção científica não foram capazes de prever a internet… Por que, então, imaginar o futuro com base na ciência e em outros elementos determinantes? Porque tem um sabor de aventura e porque muitas vezes se acerta, mesmo quando não se é escritor de sci fi, muito menos um bom escritor. Por outro lado, muita ficção tem tido um viés catastrofista, com fins didáticos ou comerciais, e acaba ficando longe da realidade. As cenas a seguir ilustram como poderá ser o Admirável Mundo Novo, bem mais realista e menos soturno do que a história de Huxley. Pinta-se aqui, apenas, o lado positivo da aplicação em larga escala da biotecnologia animal, vegetal e de microrganismos, e só dela, havendo uma supressão proposital de um possível dark side . A razão para isso é o viés do escritor: até hoje a avaliação de risco dos transgênicos tem acertado em cheio e os tremendos riscos trombeteados nos anos 80 nunca se realizaram.

 

Cena #1: Maria e João brincam com seus cachorrinhos, quase tão grandes quanto as crianças. A família observa alegra, sem receio algum. Os animais são e serão sempre saudáveis e o comportamento tão esperado como as horas de um relógio. De noite, no quintal da casa, os cães se escondem entre as plantas, mas sua fluorescência permite que as crianças os encontrem facilmente e os tragam para sua dormida. A resistência às doenças, um metabolismo optimizado, a ausência de odor pronunciado, o fácil condicionamento e a previsibilidade de comportamento foram todos frutos de duas décadas de melhoramento animal empregando novas tecnologias. Os pets foram os grandes beneficiados: com um uso quase exclusivo como animais de companhia, uma reprodução sob controle e várias características que aumentavam sua segurança para os humanos e sua sustentabilidade para o ambiente, reduziu-se a oposição à modificação genética desses animais e sua ampla adoção impulsionou a biotecnologia animal em outros setores.

Cena #2: Um casal passeia de mãos dadas na rua, iluminado pelas árvores que margeiam todas as calçadas da cidadezinha onde mora. A luz que emana das folhas é suave e homogênea, reduzindo as contas de luz do par. Em suas casas, sistemas biológicos de geração de energia também reduzem custos e minimizam os impactos ambientais associados à antiga geração centralizada de energia e à distribuição por fios. Parte dos sistemas biológicos de energia está associada a unidades de biodegradação, que dispensam esgotos, cada vez mais uma coisa do passado.  Nos tetos e paredes externas das casas e apartamentos o uso de placas solares que captam a luz solar e transformam os fótons em energia elétrica empregando clorofilas sintéticas também ajudam a tornar cada bairro independente das antigas hidrelétricas e termoelétricas. Essa segurança energética e a redução dos custos e impactos ambientais impulsionou o setor durante 30 anos e auxiliou a deslanchar projetos em outros setores.

Cena #3: Ano 2061 – A refeição está servida: há bifes suculentos, bolinhos de peixe, estrogonofe de frango, e outras “gordices”, além de grãos, folhas e frutas muito variados. Mas a sustentabilidade de cada alimento foi pensada há muitos anos, assim como sua composição: alimentos biofortificados, carnes, peixes, crustáceos e moluscos (todos de criação), leite e ovos sem anti-nutrientes, toxinas ou alergenos, produzidos a partir de animais geneticamente modificados que requerem menos alimentos, cujo manejo exige menos área, expõe animais e criadores a menos riscos, polui menos e tem sofrimento reduzido para os bichos, além de pequeno impacto ambiental. Os animais, criados muitas vezes em distantes países, fornecem carne e outros derivados, que são transportados pelo Mundo de forma mais ecológica e menos dispendiosa do que no início do século XX. Com isso muitos países passam a ser produtores de alimentos de alto valor, eliminando-se o flagelo da fome e reduzindo a pobreza no nível mundial. A produção de grãos e frutas segue a mesma lógica.

Cena #4: Ano 3021 – A refeição está servida: há bifes suculentos, bolinhos de peixe, um “ragout de chauve souri “ e outras curiosas comidas, além de uma profusão de diferentes grãos e frutas exóticas. Mas nenhum animal foi morto para a produção desse moderno “banquete de Trimalquião”, nem os grãos e frutas vieram de longe, transportados pelo mar ou pelo ar. A mágica da mesa farta e variada está na biotecnologia, que todos incorporaram ao dia-a-dia porque aumenta o valor nutritivo dos alimentos, elimina alergenos e toxinas importantes, reduz custos e é muito mais sustentável…   As “carnes e peixes” são todas produzidas a partir de cogumelos geneticamente modificados, que já têm a textura adequada ao prato pretendido e o sabor escolhido. Aliás os cogumelos também substituíram muitas outras coisas, até mesmo… tremam… o chocolate! As fruteiras foram adaptadas a novos climas e solos e sua produção aumentou uma ordem de grandeza. Novas frutas foram criadas, reduzindo-se a acidez de algumas, aumentando o sabor de outras, eliminando proteínas e outras moléculas alergênicas. Idem para os grãos. Quase mais nada precisaria vir de longe, pois pode ser produzido no país.

As histórias acima, ambientadas num futuro próximo ou daqui a cem anos, representam apenas a ponta de um imenso iceberg de mudanças de consumo e de vida derivado da biotecnologia e imaginado por muitos, com diferentes cores, a partir das visões particulares da ciência, da sociedade e de outros elementos determinantes de nosso porvir. Onde começa essa história?

Como frequentemente ocorre na ficção, a história começa com ações e personagens que vão lentamente recheando a trama. No fim dos anos 70 do século passado a Genética Molecular dava seus passos na direção da clonagem gênica e da expressão de proteínas heterólogas, isto é, proteínas de um organismo sintetizado por outro. O potencial de produção de proteínas úteis ao homem para os mais diversos fins foi imediatamente compreendido e aceito pela maioria das pessoas, mesmo os leigos e até os que se opunham ao “perigoso jogo de brincar de Deus”. Mas o conceito de organismo geneticamente modificado (ou OGM) ainda estava embrionário porque os microrganismos, leveduras ou células que eram empregados para a mágica da produção das proteínas heterólogas eram guardados em garrafas e tubos de ensaio nos laboratórios. Logo surgiram animais geneticamente modificados… entretanto, esses também eram mantidos encerrados nos laboratórios. Mas depois vieram as plantas GM, e então algumas delas ganharam o mundo: as plantas tolerantes a herbicidas e depois as plantas resistentes a insetos. A partir daí, num ambiente de discussão sempre muito polarizado, a biotecnologia passou a contribuir de forma importante não apenas para a ciência, a indústria química e outros setores onde os OGMs eram mantidos em contenção, mas  também nos campos, com plantas diversas que ajudavam o agricultor a ter mais lucro e facilidade de produção e, em muitos casos, menos impacto ambiental.

As últimas 3 décadas dessa história estão bem vivas na memória da gente porque ganharam a mídia e a nossa imaginação. Entretanto, a ciência avança e a experiência com os OGMs também e o que nos reserva o futuro parece tão fantástico, promissor e ao mesmo tempo ameaçador como as viagens dos portugueses quando inventaram a nau e aprenderam o uso da bússola e da navegação astronômica. Hoje uma nova geração de plantas GM está para nascer, com melhor perfil nutricional, mais segura e de melhor desempenho agronômico. Plantas que crescem em solos antes impróprios, que toleram secas ou outros estresses bióticos e abióticos, serão realidade em pouco tempo. A sustentabilidade da nova agricultura é um debate importante e a biotecnologia é um player vital nele. Também recém-nascida é uma geração variada e tremendamente inovadora de microrganismos de uso industrial. O que surge com força no horizonte? Os animais modificados pelas novas técnicas, que abriram para esse reino de seres vivos uma infinidade de aplicações. Da edição gênica à biologia sintética, as inovações não param de chegar e a aplicação desse leque de invenções aos animais será uma impressionante revolução nos próximos anos. Depois disso a imaginação pode abrir suas asas e provavelmente voará menos do que a realidade…

O que está para vir? O “bloco na rua” é tão grande que nem toda uma passarela do samba poderia conter os figurantes dessa nova biotecnologia. Na área da biologia animal são bovinos e caprinos sem chifres, peixes que crescem mais rápido, porcos que dispensam alguns suplementos alimentares, mosquitos que controlam mosquitos, ratos que eliminam ratos, ovos de galinha que só geram frangos… e por aí vai. Quem sabe coisas radicais e ainda longe até mesmo da bancada como cogumelos com gosto de chocolate (ver Isaac Asimov num saboroso conto sobre química – Good Taste, 1976) e mais um mundo de coisas que, em teoria – e oxalá na prática – vão transformar nosso futuro em algo mais bonito, seguro, divertido, saboroso, justo e sustentável. Bem-vindos ao futuro!

 

Literatura sugerida:

  1. The next 25 years. Nat Biotechnol 39, 249 (2021). https://doi.org/10.1038/s41587-021-00872-0
  2. 6 expert essays on the future of biotech. https://www.weforum.org/agenda/2020/01/6-expert-views-on-the-future-of-biotech/

Animal Biotechnology: Science-Based Concerns. 201 pp, 2002.   https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK207574/pdf/Bookshelf_NBK207574.pdf